segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Natureza poética

Busquei poesia, estava lá a fonte:
no azul encontro entre a água e o céu
que se fez, ao entardecer, no horizonte
no escurecer das águas cor de mel...

Quis liberdade que chegou de repente.
Vi maguari majestoso a voar;
mais além, tucuxi, dorso reluzante,
no silêncio da tarde que faz calar...

Senti na pele a virgem mata,
naquele espelho de água mansa;
e em meu olhos o que se retrata,
é sua veste ao vento em linda dança.

Findando-se o rio, vem ipê florido,
toca o horizonte, onde se deforma...
quebra-se em meu rosto, ouço seu gemido:
linda melodia de uma brisa morna...

Voei nas asas da garça alva,
por sobre a praia, toda singela!
e lá no céu a estrela Dalva
trazia presságio de noite bela...

Nos paredões da antiga floresta,
encontrei repouso pro exausto peito.
Um sonho, uma vida, mais que festa,
e é nesta busca que me deleito.

Encontrei poesia, conquistei liberdade,
senti-me habitar no olhar risonho...
erguendo os pilares de outra cidade,
dentro de mim, um antigo sonho...


Luciana Nobre

Prosa Caipira: isso é a máxima...

- E aí macho? Quem é vivo sempre aparece! Boa Tarde!
- Boa! Antes tarde do que nunca.
- E lá, quais são as nova?
- Ê cumpade, tá de mal a pior.
- E por causa de quê?
- Quanto mais rezo, mais assombração me aparece.
- A vaca foi pro brejo?
- Oxente! Antes fosse. Lembra do Chicó, meu filho derradeiro? Poisé. Num quer dá um prego numa barra de sabão.
- Inda dizem que filho de peixe peixinho é.
- Né não cumpade. O bicho é escovado. Vivo a prosear com ele: - olha, Deus ajuda quem cedo madruga, mas é mermo que falar cum pedaço de vara.
- Se avexe não cumpade. Insista mais um bucado. Nunca ouviu falar que água mole em pedra dura, tanto bate inté que fura?
- É cumpade, mas pau que nasce torto morre torto. Inda por cima reclama de tudo.
- Mas tu num diz pra ele que cavalo dado num se olha os dente?
- Digo, mas entra por um ouvido e sai pelo outro.
- E outra, só vive pensando asneira...
- É, mente vazia é oficina do peste.
- Num é o que eu penso! Falo, falo, mas santo de casa num faz milagre!
- E a Martinha, em que pé tá?
- Acho que a pobrezinha jogô pedra na cruz. Espia... e eu é que fico entre a cruz e a espada.
- Não me diga. Diga.
- Se engraçou dum cabra tão mão de vaca que até Deus duvida. Além de suvina, o danado só num é mais preguiçoso por falta de espaço. Dorme que nem gato em bica. A coitada vive na peleja, dá duro o dia inteiro, tá que nem espeto de virar tripa e, inda por cima, ele vive querendo dá nela com pau de dá em doido.
- E tu não faz nada?
- Xente! Devagar com o andor que o santo é de barro. A bicha também é ordinária. Vivo falando: - é melhor vivê só do que mal acompanhada. E ela me diz: - ah painho, o sinhô tá mais por fora que cinturão de soldado, ele é bom, só que inda num sabe disso...além do mais, contra gosto num se discute num é mermo?
- Disconjuro. Se fosse minha filha esse cabra já tinha batido era as bota.
- É cumpade, aí seria descobrir um santo pra cobrir outro. Ela ia era chorar a morte dele inda me culpá da sua disgraça.
- Danô-se, quando um num quer dois num briga.
- E tua filha moça?
- A Esmengarga é outra que vive chorando miséria na minha porta num sabe!
- E por causa?
- Um cabra sem vergonha desonrô ela e tive que casá os dois.
- E ela emprenhô?
- E num foi! Chega por ali, conversando miolo de pote. Num demora vem com as lágrima de crocodilo. Diz que o macho vai atrás de emprego e quando volta sem nada: - calma muié, a pressa é inimiga da perfeição. Num bastasse, tu num sabe que dinheiro num traz felicidade?
- E ela se cala?
- Consente. O que num tem remédio, remediado está.
- Eu inté concordo que de grão em grão a galinha enche o papo. Mas alegria de pobre dura pouco!
- Mas quem tem boca vai à Roma, se quisesse trabalhar mermo já tinha conseguido.
- É cumpade, barco parado num faz viagem.
- Mas esperança é a última que deve morrê.
- Vivia falando pra ela: - fia, guarda tuas virtude, o apressado come cru, mas ela respondia sempre: - melhor um pássaro na mão do que dois vuando.
- É mermo cumpade. Seguro morreu de velho e dona prudência foi pro enterro.
- E num é? Mas o cabra chegava com ela, prometia mundos e fundos...
- Quando a esmola é demais, até o santo desconfia.
- Coitada, comprô gato por lebre.
- Vixe Maria! Mas a mentira tem pernas curtas.
- O pior é que ela tava com a faca e o queijo na mão. Tinha um outro cabra que tinha até uma criação boa de codorna, fornecia num sei quantos ovo pras budegas todo dia. Rapaz trabalhador.
- Mas o amor é cego.
- Oxe! Quem vê cara num vê coração.
- Prossiga...
- Ela num quis, ele casô com outra que hoje vive é bem. Coitado, inda ganha uns presentes e vai ser o último a saber...
- O pior cego é aquele que num quer vê.
- É verdade. Quem acha besta num compra cavalo.
- Arriégua, parece mermo que Deus só dá rapadura pra quem num tem dente.
- Mas voltanto, como papagaio velho num aprende a falar, deixei Esmengarda se estribuxar, vai ver assim aprende. Por enquanto, a disgramada tá mais perdida do que cego em tiroteio.
- E ocê num se incomoda não cumpade?
- Olha o sujo falando do mal lavado. Tua filha também num padece um bucado? E o que tu faz? Pimenta nos olho dos outro é refresco.
- Quem num tem cão caça com gato. Já disse tudo o que podia, num deu jeito. Nada como um dia após o outro. Se ao menos a mãe tivesse viva...tu sabe que uma andorinha só num faz verão.
- De fato, a união faz a força. Mas Deus escreve certo por linha torta.
- Num me sai da cabeça nas pouca vez que eu quis ajeitar tudo ela defender o miseráve.
- Se é assim, uma imagem vale mais que mil palavras, é melhor num mexer mermo.
- Ora na verdade! E quem tá na chuva é pra se molhar.
- E num é o que eu faço?! Quem corre cansa, quem anda alcança.
- Cumpade, num sei não. Vamo dá o seu ao seu dono.
- Como assim?
- Comigo já se passou e águas passadas num movem moinhos ...
- E comigo num é tal qual?
- Home, tua fia inda é nova, contigo a disgraça é pior, ela veio a cavalo.
- Nem tudo o que reluz é ouro cumpade.
- Eu só acho que quando os gatos se ausentam, os ratos fazem a festa.
- Já tô inté conformado. O tempo é o mior remédio, pois devagar se vai ao longe...
- O cumpade me perdoe, mas acho que essa tua história é pra boi durmi, ou então tá que nem aquela: casa de ferreiro espeto de pau.
- O que tu tá querendo dizê?
- Pelo que tô vendo, cão que ladra num morde...
- Se explique, vamo,
- Tu num é o valentão? Vive dizendo que quem cum o ferro fere cum o ferro será ferido?
- Mas...
- Sei não. Quem num te conhece que te compre. Acho que tu tá escondendo o jogo... Eu sei que o cabra que se ajuntou com Martinha num vale uma cibalena, mas é o tal caso: se não pode cum ele, junte-se a ele. Ela gosta mais de sofrê do que véia em procissão. Mas tu, sempre tão valente? Sei não...
- Valei-me cumpade, sabe que tu tá certo! Mais eu vô é mostrá pra ele que quem ri por último ri melhor, ora se vô!
- E tu nunca pensô nisso antes.
- Sabe que não! É que no começo eu até achava que ele tinha boas intenções.
- De boa intenção o inferno tá cheio cumpade.
- Justo. Depois vi que era só pra inglês vê. Eu disse pra ele: - cada macaco no seu galho. Num quero te vê nem pintado de ouro.
- E ele num dá mais as cara por aqui.
- Vixe! Dá nada.
- Deve ter é medo de tu e é muito.
- Será home?
- Ôxe! Onde há fumaça há fogo!
- Cumpade eu inda tenho lá minhas dúvida.
- Home, atenção no serviço, quem avisa amigo é!
- Sabe que tu tá certo de novo. Gato escaldado tem medo inté de água fria.
- Ora se não, e quem num deve num teme.
- Home, tu sabe mermo das coisas. Esse cabra tem é medo de mim.
- Porco sabe o pau que se coça.
- E o que eu faço cumpade?
- Mostre pra esse sujeito que aqui se faz aqui se paga.
- Vivendo e aprendendo...
- Que se não, quem guarda cum fome, o gato vem e come.
- Mais nem que chova canivete, ele vai ver cum quantos paus se faz uma canoa.
- Mostra pra ele cumpade que não se deve buli cum a fia dos outro.
- Num há quem cuspa pra cima que num lhe caia na cara.
- É, o que é do homem o bicho num come.
- Em terra de cego, quem tem um olho é rei. Vou me acertar cum esse cabra e lavar minha honra.
- É isso aí cumpade a justiça tarda mais num faia. Além do mais, o mundo é dos mais espertos...


Luciana Nobre

O ex-assassino



Por muitas e muitas vezes, dois conhecidos discutiam sobre diversos assuntos sem muita relevância. Um deles, Tom, mais pavio curto que o outro, tomava as dores pelas discordâncias, interpretando-as como verdadeiras ofensas à sua honra de homem vivido.

Assim inebriado, decidiu por pregar uma peça em seu companheiro de bar, Hélio. Depois de muito pensar, sabia então o que queria. Dar-lhe-ia um susto, sem muita maldade. Simularia um assalto e veria aquele que julgava pretender-se dono de toda verdade ajoelhar-se ante o pavor de um falso algoz. Fez e aconteceu. Providenciou o capuz, a arma de brinquedo, passou e repassou as estratégias da trama, calculou o instante certo em que toparia a sós com sua vítima. O palco da encenação seria a rua quase sempre deserta por onde obrigatoriamente passavam os poucos moradores da Vila Recanto do Céu, onde os dois e outro punhado de gente, a seu modo, abrigavam-se do relento. A tal rua, sem viv’alma, asfalto, iluminação ou coisas do tipo, era perfeita, pensava Tom.

No dia da estréia do “show”, dito e feito. Quer dizer, quase isso. Sabendo do perigo do logradouro, Hélio nem de longe pensava em andar desprevenido, mas seu 38 nem chegou a ser necessário. Quando Tom quis aproximar-se para o falso assalto, não se sabe se por obra do destino ou para o destino daquela obra, uma viatura da polícia tentava retomar a rua principal. Uma vez perdida, por ali passou acidentalmente e diante da situação criminosa instalada, os policiais não titubearam em conduzir os dois, vítima e assaltante ainda encapuzado, à delegacia mais próxima.

Colocados frente a frente apenas na DP, para a surpresa do delegado, os envolvidos eram notadamente conhecidos um do outro. A descrição, pelos policiais, da reação menos comum de Tom durante a captura, seu revólver de plástico e sua choradeira frente à autoridade policial denunciaram sua inexperiência na prática criminosa, foi o que declarou o delegado. Hélio concordou com o engano de detê-lo ali por mais tempo e aliviou a situação de Tom. Alegou o fato de serem companheiros de copo e, portanto, aquilo não deveria passar de uma brincadeira de mal gosto. Por perdoá-lo, sugeriu ao delegado a liberação dos dois.

Acontece que nesse instante, a mania de inferioridade de Tom, máscara de seu orgulho, somada ao tremendo constrangimento pelo qual acabara de passar, encheu de ódio o seu coração sofrido e sua veia mais amarga tufou em seu peito expelindo seu veneno, há anos em processo, através de seus poros e, não bastasse, por meio de seu olhar de desprezo, lançou sobre Hélio vorazes faíscas da vingança silenciosamente jurada. Hélio, por sua vez, deixou a delegacia aliviado, pois não houvera sido revistado por estar na condição de vítima. Entretanto, tentava entender por que Tom o teria deixado de mãos estendidas, embora o tivesse livrado da prisão em flagrante.

Se a vida é uma grande peça teatral, a de Tom também o seria, e o próximo ato prometia bem mais tragédia. Desta vez, a vida imitaria a arte, ou melhor, a arte ganharia vida. Dias depois, quando Hélio voltava pra casa pelo caminho de sempre, caminho do medo, caminho do susto, caminho do crime, percorria a passos largos numa velocidade condizente com seus batimentos cardíacos. O fato é que Hélio, mesmo antes do vexame, já sentia arrepios toda vez que passava por ali e, mesmo tendo superado a triste lembrança, seus receios aumentavam em noites sem luar. Verdade seja dita, embora não querendo acreditar, Hélio percebera o perigo no olhar de Tom e aquilo queimara sua retina, mas, naquela hora, seu sangue é que parecia queimar seu coração.

A intuição não falharia. A penumbra, filha da neblina, que ao cair inundava o local de insegurança, dificultava-lhe ainda mais a visibilidade. Um frio soturno obrigou-lhe a aguçar a vista e Hélio quase não teve tempo de pensar que se o vulto que se aproximava rapidamente fosse Tom, desta vez ele não estaria para brincadeira. Na angústia do momento, sacou de seu revólver, que não era de brinquedo, mirou na direção do adversário e o instigou a desistir da empresa. O espaço entre os opositores diminuía metro e metro. Pela falta de ímpeto e de raciocínio, embora armado, Hélio preferiu atracar-se com o inimigo. Após alguns instantes de luta corporal, cujas descrições são servidas pela imaginação, tendo-se esquivado do pequeno canivete bandido, o que restou a Hélio foram dois disparos mortais. Nem precisou muito esforço para descobrir que, realmente, aquele era Tom, nem ao menos disfarçado de assaltante, somente sua calça surrada naquela que é a mais certa das horas.

Hélio mudou de cidade e durante muitos anos carregou o peso pela morte do velho Tom. Julgava-se assassino cruel, indigno de perdão e sentia-se a mais e mais um perdedor. No entanto, hoje, freqüenta determinada igreja e seus pensamentos já não são mais os mesmos. Por ter confessado seus pecados, seu arrependimento transferiu sua culpa para o anjo decaído, tendo sido ele apenas mais uma de suas vítimas e, nesse caso, aliás, a única. O ex-assassino lamenta o fato de Tom, por não ter tido tempo de se arrepender e pedir perdão, ser tão culpado, mas tão culpado, que desde então e por toda a eternidade, com certeza esteve e estará no inferno.



Luciana Nobre

sábado, 30 de outubro de 2010

CRIANÇAS...CONTRASTES

Cuidada criança, cheirando colônia, cabelos cuidados...
Conheces certamente conforto, carinho,
camisetas caras, cama confortável,
colégio conceituado, cardápio convidativo.
Caminhas calmamente.
Corres contente.
Cantas cantigas com coleguinhas colegiais.
Colecionas convites.
Conquistas carisma.
Consomes coca-cola, chocolate, celular, cinema...
Criança corada, criança cortês!
Conheces casualmente criança carente?
Como conceber?
Cessam-te convívio, contato...cegueira conseqüente.


Compreende,
certas crianças, condições contrárias,
conhecem cedinho caminhos cruéis:
canivete, crime, craque, contrabando.
Comum cheirar cola.
Covardia contra coragem, conflitos, caos constante.
Criança carecedora:
cárie, catarro, coceira, catinga, caraolha, capionga.
Criança constrangida, criticada,
cabisbaixa, chora calada.
Carências complicadas.
Caso cinco, caso catorze carnavais,
Cláudios, Carlos, Cristianos
conhecem-se cabeça, cascão, caniço.
Calcar chinelo: custa caro!
Costumeiro calção caído, chita caçoada.
Cotidianamente, caminham capengas,
canelas cinzentas, conquistando cais.
Criança capacho!
Costas calejadas conduzem cestas,
chuchu, cenoura, couve, cebola.
Carga cruel!
Conseguem comida, comem correndo.
Centro cidade, casos comuns:
Crianças carregam caixotes,
consertam calçados,
catam cédulas, centavos.
Calor castigante, cortam cana,
contribuição cansativa, caríssima.
Criança castiça!
Como cochilam?
Corpo cansado, cedido chão, cascalho calcado.
Caixas catadas cobrindo casebre, chafurda...
Comumente, compartilham calçadas,
céu constelado constituindo cobertor,
comutam calor “confortante”.


Corrupção convertendo, contorcendo
caótica Constituição!
Capitalismo contaminando condutas,
cutucando cobiças, criando cadáveres.
Cemitério convergente...comovente.
Calamidade completa.
Covardes cabos, cretinos, carrascos
cominando cassetetes, castigos, cadeia.
Compraz-lhes concretizar censuras,
chacota, carnificina.
Crueldade!
Como cicatrizar corações
causando-lhes chagas centenas?
Como confiar?
Criança cativa!


Caras crianças célebres, comedidas,
cresceis capacitadas:
cursos, concursos.
Confeitam currículos
Casam-se,
constroem casarões...castelos
Comemoram...
Cadê compaixão?
Cadê coração?
Cabeça cheia, compromissos cíclicos, clamam: caluda!
Calem comentário careta! Chega!


Crianças condenadas, coitadas,
confinadas, comprimidas,
compelidos confrontos constrangedores.
Comodismo culminando crescimento confuso.
Criança, considera conselho:
carrega contigo consciência casta.
Conserva-te, contudo, confiante.
Continua conturbada contramão.
Convalesce-te, crê:
como criatura crescente,
cruzarás criminosa contradição,
conquanto, controlada conspiração,
conquistarás, conseqüentemente,
contentamento...consolação.




Luciana Nobre